Em entrevista à Retes, Felix Rigoli atribui importância central aos processos de trabalho e formação para a evolução dos sistemas de saúde e destaca a importância de uma rede nacional, como a Retes, para evidenciar as repercussões de ações individuais ou coletivas dos recursos humanos nas transformações da saúde. Além disso, aponta o Sistema Único de Saúde (SUS) como “o grande laboratório mundial de sistemas universais de saúde” e “(possivelmente a maior) ferramenta igualitária de um país com muitas tensões e divisões”.
Felix Rigoli é Doutor em Sistemas Complexos e Cuidados de Saúde (USP), professor e pesquisador no Núcleo de Bioética e Diplomacia da Saúde (Nethis-Fiocruz) e coordenador do Observatório ODISSEIA – Desigualdades, Desenvolvimento e Inteligência Artificial em Saúde. Ao longo de sua trajetória, ocupou as funções de assessor sênior em Sistemas de Saúde em organismos como a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e o Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (ISAGS/UNASUL), diretor da Rede de Atenção Primária do Ministério da Saúde do Uruguai e consultor em projetos com o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Além disso, tem experiência como docente e investigador nas universidades de São Paulo (USP), Montreal (UdeM), Campinas (Unicamp) e Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Confira a entrevista:
Você possui uma trajetória marcante em organismos internacionais como a OPAS e o ISAGS-UNASUL, atuando na interface entre políticas de saúde, cooperação técnica e realidade local. De que forma uma iniciativa como a Rede Nacional de Trabalho e Educação na Saúde pode se inspirar nessa experiência de diplomacia em saúde para criar pontes efetivas entre o conhecimento acadêmico produzido nas universidades, a prática de gestores nos territórios e as políticas nacionais, evitando que esses saberes permaneçam em compartimentos estanques?
Felix Rigoli: A ideia básica original de uma Rede como a proposta é que as políticas públicas em Trabalho e Educação em Saúde não são decisões técnicas, devido ao fato de que são políticas que atuam com agentes individuais e coletivos com estratégias e interesses. Profissões, sindicatos, associações, junto com universidades, o Estado e empresas privadas constituem campos de conflito em diversos níveis; reconhecendo ao mesmo tempo que os processos de trabalho e formação em saúde são o componente chave para que um sistema de saúde possa evoluir e aumentar sua cobertura, acesso e qualidade.
A relação entre as mudanças da saúde e as questões de recursos humanos levantadas nesse processo tem sido destacada em vários estudos. Esses estudos têm se concentrado em como os novos processos modificaram as formas como os profissionais de saúde interagem com seu local de trabalho, mas poucos deles têm prestado atenção suficiente às formas como os profissionais influenciaram as mudanças. Muitas iniciativas de reorganização do setor da saúde modificam aspectos críticos da força de trabalho da saúde, incluindo as condições de trabalho, o grau de descentralização da gestão, as competências exigidas e todo o sistema de salários e incentivos. Os recursos humanos na saúde, cruciais para a implementação de mudanças no sistema de prestação de serviços, fazem ouvir sua voz de muitas formas sutis e abertas – reagindo às transformações, apoiando, bloqueando e distorcendo as formas de ação propostas.
“Os recursos humanos na saúde, cruciais para a implementação de mudanças no sistema de prestação de serviços, fazem ouvir sua voz de muitas formas sutis e abertas – reagindo às transformações, apoiando, bloqueando e distorcendo as formas de ação propostas”.
Uma Rede Nacional como a que se propõe pode explicitar para todos os atores relevantes as evidências sobre como as ações individuais ou coletivas dos recursos humanos estão moldando as iniciativas de mudança a diferentes níveis, destacando o processo de reforma, as reações da força de trabalho e os fatores que determinam a participação bem-sucedida dos recursos humanos. Ela pode fornecer uma maneira mais poderosa de prever os efeitos e as interações em que diferentes “projetos técnicos” operam quando interagem com os recursos humanos que afetam.
O Observatório de Desenvolvimento e Desigualdades em Saúde e Inteligência Artificial, coordenado por você, lida com uma das fronteiras mais críticas da saúde contemporânea. Na sua avaliação, de que maneira uma rede como a Retes pode ajudar a garantir que as inovações tecnológicas e as novas práticas educacionais em saúde não apenas aumentem a eficiência, mas também sirvam como ferramentas poderosas para reduzir as iniquidades em saúde?
Felix Rigoli: Nosso Observatório ODISSEIA foi criado levando em consideração o fato de que a saúde digital, e especialmente a inteligência artificial aplicada à saúde, atua em um campo em disputa de projetos – por uma parte, uma saúde para todos, como direito humano; e por outra, o projeto de saúde como área de produção de lucro e segregação de mercados guiados pela rentabilidade. Infelizmente, as novas tecnologias, quando aplicadas à saúde, têm a capacidade de amplificar consequências em um sentido ou em outro.
Devido à fascinação pelas novas tecnologias (a chamada tecnoforia ou tecno-otimismo), existe a presunção de que sempre vai ser positiva a introdução de novidades. O Observatório ODISSEIA tenta colher evidências e provocar debates sobre regulação da saúde digital e inteligência artificial, orientada pelos princípios do SUS de universalidade e equidade. Atuamos em conjunto com outros projetos da Seidigi [Secretaria de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde], que têm uma orientação mais específica para a formação de consciência e capacidades críticas em saúde digital.
Tendo atuado como consultor para agências como o Banco Mundial e o BID, você conhece bem a importância de evidências sólidas para orientar investimentos e políticas. Em sua avaliação, que funções estratégicas essa nova rede deve priorizar para se consolidar como referência nacional em Trabalho e Educação na Saúde e, assim, produzir conhecimento capaz de influenciar de forma concreta a agenda governamental?
Felix Rigoli: Na verdade, sempre que atuei para organismos de financiamento, ficava com a dúvida de quanto o financiamento externo podia ajudar (ou atrapalhar) o desenvolvimento de uma força de trabalho em saúde. Financiar mais escolas que aumentam a migração dos graduados a regiões mais ricas é um bom investimento? Recentemente (2022) tive uma conversa franca com o ministro de saúde de Guiana sobre as necessidades de pessoal de dez novos hospitais a serem construídos com apoio da China. Os profissionais de saúde de Guiana emigram em altas taxas e eu queria convencer o ministro de que não teria sentido construir hospitais sem investir previamente nos próprios profissionais de saúde no país.
“Sempre que atuei para organismos de financiamento, ficava com a dúvida de quanto o financiamento externo podia ajudar (ou atrapalhar) o desenvolvimento de uma força de trabalho em saúde. Financiar mais escolas que aumentam a migração dos graduados a regiões mais ricas é um bom investimento?”.
O ministro convenceu o presidente de que era necessária uma expressão de vontade política com os trabalhadores em todas as categorias profissionais (como sempre, a primeira reação era de aumentar os pagamentos aos médicos), que finalmente foi concretizada e permitiu que o investimento em planta física e equipamento fosse acompanhado por investimentos em salários para todas as categorias e um incremento na formação de 1000 enfermeiros, apoiada pela Escola de Enfermagem da USP de Ribeirão Preto.
Sua passagem pela direção da Rede de Atenção Primária no Uruguai, nos anos 80, e sua atuação global lhe deram uma perspectiva histórica única sobre a evolução dos sistemas de saúde. Olhando para trás, quais foram as lições mais importantes que você aprendeu sobre a integração entre trabalho, educação e gestão em saúde? E como a Retes pode incorporar essas lições para enfrentar os desafios atuais e futuros, como a escassez de profissionais e a necessidade de formação permanente?
Felix Rigoli: A ideia de Redes de atenção está presente desde os primeiros sistemas de saúde, da União Soviética e da Grã-Bretanha, nas três primeiras décadas do século XX, ou seja, quase cem anos. As redes de conhecimento e de formação são também antigas, existem em todas as revoluções humanas, seja na chamada “República das Letras”, sociedade semi-secreta da Europa do Renascimento, ou nas redes de conhecimento e comunicação dos povos originários das Américas. No século XX, as teorias de Redes formularam algumas características que fazem de uma Rede algo mais que a soma dos seus nós: comunicação dinâmica, intercâmbios abertos, nós principais e secundários que podem substituir uns aos outros conforme as necessidades.
Uma lição aprendida nas várias redes de conhecimento de trabalho e educação em saúde é a necessidade de um equilíbrio entre formalidade (algumas estruturas fixas, com financiamento sustentável no tempo) e a abertura e flexibilidade de projetos por regiões ou temáticas, sem se amarrar a uma regra única.
“Uma lição aprendida nas várias redes de conhecimento de trabalho e educação em saúde é a necessidade de um equilíbrio entre formalidade […] e a abertura e flexibilidade de projetos por regiões ou temáticas, sem se amarrar a uma regra única”.
Uma outra lição é que a prioridade para temas de trabalho e educação em saúde varia muito em diferentes lugares (estados, municípios) ao longo do tempo. A Rede é, portanto, uma forma de compensar essa variabilidade, de não permitir que um tema crucial como o que nos preocupa seja “abandonado” por uma decisão de uma autoridade. Um exemplo trágico foi como, na pandemia, o abandono do interesse pela saúde da população pelo governo federal foi compensado pelo esforço dos estados em assumir as redes de informação epidemiológica e outras iniciativas.
Quais oportunidades de intercâmbio e colaboração internacional você vislumbra para a Retes e como essa integração com atores e redes globais pode enriquecer o debate e as práticas em Trabalho e Educação na Saúde no Brasil?
Felix Rigoli: O Brasil tem várias dimensões de enorme interesse para a região e o mundo na área de saúde:
Em todas essas dimensões, muitos países da região e dos BRICS podem ter projetos de intercâmbio e laboratórios de soluções, criando oportunidades de desenvolvimento conjunto.
Por Inês Costal e Patrícia Conceição